Resumo do capítulo 1 do livro “As donas no poder: mulher e política na Bahia”

O capítulo 1, A Construção do pensamento feminista sobre o “não-poder” das mulheres, do livro As Donas do Poder. Mulheres e Política na Bahia, de autoria de Ana Alice Alcântara Costa e publicado pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM, Faculdade de Filosofia e Ciências Humans-UFBA), se propõe a “analisar, à luz da construção do pensamento feminista, a opressão feminina ou o não-poder das mulheres” (p. 19).

Na abertura do capítulo, a autora já evoca uma outra, Marcela Lagarde, e defende uma concepção de poder segundo a qual há um pólo opressor, a quem são arrogadas as faculdades de dominar, julgar, sentenciar e perdoar e um pólo oprimido, ao qual as mulheres foram historicamente relegadas e ao qual é negado a própria condição de sujeito.

Aqui, já é possível apreender o teor engajado do texto, que advoga que “as pequenas parcelas de poder ou os pequenos poderes que lhes [às mulheres] tocam e que lhes permitem romper, em alguns momentos ou circunstâncias, a supremacia masculina, são poderes tremendamente desiguais” (idem).

Em seguida, a argumentação segue para sua primeira divisão tópica, o marxismo, na qual, conforme a autora explica, em A Origem da família, da propriedade e do Estado, Engels defende que no paleolítico o homem era coletor, enquanto à mulher cabia o trabalho doméstico, divisão supostamente natural, e a partir da revolução agrícola, com o acúmulo de riqueza proveniente da criação de técnicas específicas de agricultura e pecuária, tarefas sobre as quais legislavam os homens, a mulher foi relegada a um papel servil enquanto trabalhadora e subalterno enquanto mãe, já que a riqueza – e portanto a herança – tinha origem paterna.

Após a explicação da concepção marxista, ela denuncia alguns dos problemas deste ponto de vista, segundo o qual com o desaparecimento das instituições burguesas também a opressão sexual desapareceria, uma vez que ela seria fruto da propriedade privada. O primeiro destes problemas é que, defronte a exemplos materiais de sociedades sem propriedade privada, como aquela da União Soviética ou aquelas nas quais tal tipo de posse sequer foi inventada, nunca foi possível verificar o desaparecimento de tal opressão. Outros problemas que podem ser apontados são a suposta naturalidade da divisão sexual do trabalho, a concepção de mulher enquanto mera reprodutora e a falta, no pensamento de Marx, da dimensão da importância do trabalho doméstico em qualquer tipo de economia social.

A concepção marxista clássica sobre a opressão feminina tinha ainda, conforme explicitado no texto, o problema de, vinculando tal opressão ao capitalismo, desqualificar as lutas feministas do século XIX (quando escreveram Marx e Engels). Afinal, se o argumento é de que uma vez findo o capitalismo teria fim a opressão das mulheres, e as democracias representativas se apresentavam como sistemas políticos derivados de uma sociedade burguesa, o direito ao voto não era algo pelo que lutar, e sim a revolução socialista, que acabaria miraculosamente com a opressão feminina.

Em seguida, o capítulo parte para o segundo tópico, que aborda o patriarcado e o feminismo radical, no qual é explorada a contribuição, no pensamento de Kate Millet, do conceito weberiano de poder patriarcal, exercido no seio familiar pelo pai exclusivamente por força da tradição. A autora afirma que, para Millet, “a relação que se estabelece entre homens e mulheres é uma relação política, e o domínio do homem sobre a mulher se baseia na crença generalizada de sua supremacia biológica sobre esta” (p. 29), e ainda que a teorização de Millet é também densamente influenciada pelo pensamento apresentado por Simone de Beauvoir em O segundo sexo, resumido no adágio “não se nasce mulher, torna-se mulher”.

Outras autoras são evocadas a seguir, para ilustração das teses de que o patriarcado teria origem no papel exercido pela mulher nas práticas de reprodução humana ou, além, mesmo na própria heterossexualidade, que representariam para as mulheres o que o trabalho representa para os operários na tradição marxista. Esta linha de pensamento, associada ao que convencionou-se chamar “feministas radicais”, também foi, conforme apresenta a própria argumentação do livro, sujeita a severas críticas, sobretudo pelo seu biologismo e ahistoricidade.

A seguir, são mencionadas as críticas feitas por Zillah Eisenstein a essa corrente de pensamento, sobretudo representada na figura de Firestone, que para Eisenstein toma o modelo do marxismo clássico e substitui o capitalismo pelo patriarcado como sistema opressor. Eisenstein chama atenção para a necessidade de compreender posições econômicas ou mesmo contextos históricos diferentes para entender o patriarcado, que recusa a ver como monolítico. Numa linha parecida, são apresentadas ainda as críticas de Joan Scott, que aponta a necessidade de entender os cruzamentos das desigualdades sexuais e outras desigualdades e a importância da elaboração de uma teoria que não se baseie exclusivamente na diferença física, o que é impossível se a ênfase fica posta unicamente sobre a problemática da reprodução.

O livro empreende, a partir daí, um esforço em argumentar sobre o não “tão estranho” casamento entre feminismo e marxismo, tópico no qual se menciona que várias feministas socialistas rechaçavam o essencialismo das afirmações de Engels sobre a necessidade de reprodução biológica como determinante para a divisão sexual do trabalho nas sociedades capitalistas, e que muitas delas abraçavam o argumento de que a opressão das mulheres não é exclusiva de tal sistema econômico. Outras, partindo de onde Engels havia deixado, iniciaram suas abordagens tratando do trabalho doméstico. Em comum, quase todas assimilavam o argumento de que a mudança no sistema econômico não era suficiente para o desaparecimento da opressão feminina.

É citada então a contribuição de Juliet Mitchell, para quem as estruturar-chave da situação da mulher são a produção, a reprodução, a sexualidade e a socialização das crianças, e para quem “na medida em que a maternidade se converteu em uma necessidade histórica da família e da reprodução da força de trabalho, a mulher ficou excluída da produção social” (p. 34). Para Mitchell, a sexualidade é o campo onde se nota uma maior coerção da mulher, vista como propriedade do homem, e a família é uma instituição que faz reverberar praticamente todas as estruturas-chave desta opressão.

As feministas socialistas, que publicaram seus trabalhos em paralelo com as feministas radicais, deram um passo à frente no sentido de enxergar o modo como o capitalismo e o patriarcado se atravessam. De notar que este sistema econômico, bem como os que o precederam, embora não tenha sido a origem da opressão feminina, só se sustenta devido à hierarquização entre homens e mulheres e à divisão sexual do trabalho que dela resultam. Na esteira deste argumento, e indo além dele, Combes e Hicault associam a produção de mercadorias à reprodução sexual, ou “produção social de seres humanos” (p. 37) e afirmam que “a relação antagônica entre os sexos se manifesta tanto na produção como na reprodução. Não está circunscrita à família, do mesmo modo que a relação capital/trabalho não está restrita à produção” (p. 37).

No tópico seguinte, Saffioti e a simbiose “patriarcado-racismo-capitalismo”, a autora apresenta as razões porque acredita que Saffioti é a teórica que chega mais próximo do que chama de “essência da relação entre patriarcado e capitalismo” (p. 38). Afirma que Saffioti redefine patriarcado “como um dos esquemas de dominação-exploração componentes de uma simbiose da qual participam também o modo de produção e o racismo”, excluindo do conceito suas conotações weberianas, e põe os holofotes sobre a existência não-autônoma, mas mutuamente constitutiva (simbiótica, enfim) do patriarcado e das opressões de classe e de raça, criticando as feministas socialistas e a dicotomização das opressões e apontando que o capitalismo tem sua face de política e o patriarcado, suas possibilidades de dominação econômica.

A seção seguinte aborda o conceito de “gênero” e as “relações de gênero”. Como, a partir dos anos 80, este conceito se apresenta enquanto possível solução teórica à necessidade de descolamento entre a opressão patriarcal e qualquer biologismo essencialista; como, enfim, “o conceito de gênero é um conceito relacional enquanto uma categoria de analise e deve ter as condições de captar a rede de relações sociais, assim como as mudanças históricas sofridas através dos mais diferentes processos sociais” (p. 43). Aqui, o texto resgata o aforismo de Beauvoir e põe ênfase no verbo “tornar”. Resgata também Joan Scott, e sua noção de que a partir do conceito de gênero os estudos sobre o patriarcado se imbuem de uma noção foucaultiana de poder, não compreendido como único ou unificado, mas “como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso nos ‘campos de forças’” (p. 43).

A autora procede em seguida, ainda através de Scott, a um resgate de usos limitados que já foram feitos do conceito de gênero e a uma análise de tais usos. Expõe que num primeiro momento as feministas o usaram para referir-se às relações desiguais entre homens e mulheres fugindo ao essencialismo, mas ainda trabalhando de modo binário; que as feministas marxistas punham limites no entendimento de que as opressões de gênero antecedem ao capitalismo e se encontram também fora da esfera trabalhista e que algumas teóricas, na linha de Gayle Rubin, explicaram ainda a desigualdade de gênero de modo limitado através de variantes da noção (cara à antropologia estrutural) de tabu do incesto, pondo o foco da opressão nas estruturas de parentesco e esquecendo sua dimensão política.

Para Scott, a autora resume quando se aproxima a conclusão do capítulo, o gênero é a forma nova de representar as relações de poder e um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas – através de símbolos culturalmendte disponíveis, de conceitos normativos que limitam as metáforas e apresentam interpretações hipercodificadas de tais símbolos, de organizações de instituições sociais e da identidade subjetiva.


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